Os Ídolos

Pedro Bello
4 min readDec 31, 2020

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1.

Uma vez perguntaram a Ronaldinho Gaúcho o que ele achara da performance da seleção brasileira na copa de 2010 (para a qual ele não fora convocado). Ronaldinho foi direto: não podia falar nada, já que não assistira aos jogos — o futebol só o interessava quando ele mesmo estava dentro de campo.

A resposta impressionava pela franqueza. Se todos adotassem essa postura, a indústria do futebol não existiria e Ronaldinho Gaúcho não seria um ídolo mundial. Aos seus próprios fãs, Ronaldinho parecia dizer que estavam perdendo tempo.

É possível amenizar o impacto da resposta se considerarmos que Ronaldinho estava tão acostumado a ser a estrela que não se conformava em observar os gramados a distância. Para ele, não há prazer com o gol alheio, pois ele próprio quer balançar as redes. A explicação é verdadeira, mas por que não inverter sua lógica? Por que nós aceitamos tão facilmente vibrar com um gol que não é nosso?

Sim, eu sei que não faria um gol na copa do mundo e por isso torço pelos meus habilidosos compatriotas. Mas aí estão os campeonatos de várzea… Não, também não me serviriam. Ainda assim, o futebol não é aqui mais que um exemplo. Enquanto escrevo este texto, já vi pelo YouTube partidas de ping-pong e de xadrez, lutas de MMA, entrevistas com personagens aleatórias e apresentações musicais da década de 70. Pelo Instagram, acompanho o que as pessoas estão lendo, comendo e onde estão passando o fim de ano.

Mais do que nunca, consumimos a vida alheia. É a aventura dos outros que nos interessa e nos esquecemos da nossa própria aventura. Ou, voltando ao futebol, ficamos sentados na arquibancada ou no sofá, torcendo por nossos craques favoritos e esquecemos que temos um jogo a ser jogado. Pode não ser um grande clássico de repercussão mundial, mas é o único que é realmente nosso. Há uns meses, durante sua temporada em uma penitenciária paraguaia, Ronaldinho foi fotografado jogando futsal com outros prisioneiros. Talvez para ele tenha valido mais que assistir à final da copa.

2.

Alceu Valença conta que parou de ouvir música no dia em que decidiu se tornar artista e compor suas próprias canções. O menino de São Bento do Una que crescera ouvindo Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro agora desligava o rádio em busca de originalidade.

A influência dupla e ambígua dos ídolos aqui é evidente: a primeira influência é inspiracional e formadora; a segunda, limitante. Para entender melhor o que digo basta pensar que o jovem Alceu, enquanto sonhava em um dia ser um músico de sucesso, não imaginava a si mesmo cantando Morena Tropicana, mas sim Asa Branca. Em outras palavras, ele não sonhava em ser Alceu Valença, mas em ser Luiz Gonzaga.

O sonho é impossível, pois se apresenta como cópia da vida de outra pessoa. Para ser alcançado em sua essência, a sua aparência precisa ser renunciada. Lembro-me dos versos do poeta Antônio Machado:

“Caminante, no hay camino,

se hace camino al andar”

Pode parecer que escrevo apenas para artistas, mas cada vida é uma travessia e os ídolos estão por toda parte.

3.

Francisco Brennand sonhava em ser um grande pintor. Quando adolescente, aprendera a esculpir com Abelardo da Hora, mas foi a arte da pintura que sempre dominou a sua imaginação. Aos vinte e um anos, Francisco mudava-se para Paris com uma única missão: tornar-se um grande pintor.

Contudo, a cerâmica sempre esteve presente no universo da família Brennand por conta da Cerâmica São João, antiga fábrica de telhas e tijolos que havia sido fundada por seu pai Ricardo Brennand. Estando a cerâmica tão próxima e sendo Francisco também um escultor, nada mais natural para ele que tornar-se um ceramista, mas não foi o que aconteceu. Francisco queria ser pintor e considerava a cerâmica uma arte menor. Mais velho, quando contava essa história, ele alegava que fora influenciado por um preconceito vigente na França do século XIX, de onde viera sua formação. Mas podemos contar de outra forma: os seus ídolos, franceses do século XIX, eram todos pintores; nenhum deles era conhecido por um legado com a cerâmica e, por isso mesmo, ele a desprezava.

Quando chegou a Paris, aos vinte e um anos, Francisco foi convidado por Cícero Dias para visitar uma exposição de Pablo Picasso. A surpresa aconteceu quando o jovem Francisco, que ansiava por ver os quadros cubistas de Picasso, viu que a exposição era apenas de esculturas de cerâmica. O grande revolucionário Pablo Picasso fazia esculturas de cerâmica! Naquele dia, Francisco decidiu que voltaria para Recife e se dedicaria seriamente ao trabalho com a cerâmica.

Francisco se referia a esse episódio como “humilhante”. Mas por que humilhante? Porque o denunciava como um mero imitador, alguém que renunciava às suas circunstâncias e oportunidades mais particulares para perseguir outras biografias. Mais do que ser um novo ídolo, Picasso o libertou de seus ídolos anteriores e possibilitou o surgimento do artista Francisco Brennand, grande ceramista que construiria sobre as ruínas da antiga Cerâmica São João a sua Oficina, um templo mitológico, lugar tão incrível quanto original.

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