O Mito do Professor Bigodudo

Pedro Bello
2 min readJan 26, 2021

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Quando eu era muito pequeno, meu pai lia para mim a história do Professor Bigodudo. Duas crianças (eu e minha prima) saíam para procurar o seu professor, o professor Bigodudo. Em cada local que visitavam, encontravam uma nova parte do professor, que ia ganhando forma a cada página: primeiro, achavam na igreja o seu chapéu; depois, na tinturaria a sua gravata; não me lembro onde encontravam em seguida os seus óculos; por fim, na barbearia achavam o seu imenso bigode. A adição sucessiva desses elementos, que apareciam de um em um a cada nova página, desvendava aos poucos a forma final do professor. A descoberta do bigode, último item, convence as crianças de que o professor Bigodudo foi encontrado e o conto acaba.

A história é eficaz pois surpreende a criança ao criar uma pessoa a partir de suas partes. Mas por isso mesmo ela é cômica, já que não é possível montar um ser humano como se monta um quebra-cabeça. Em algum momento, a criança perceberá a farsa: o Professor Bigodudo não enxerga o mundo da mesma forma que a criança enxerga; na verdade, ele sequer enxerga o mundo; ele também não está presente no mundo como a criança está presente; o Professor Bigodudo não tem consciência e portanto não existe.

Não me recordo se na infância eu pensei tudo isso. O que sei é que, já adulto, descobri que aquela história infantil era na verdade um mito, e que na modernidade esse mito ganhou o estatuto de pensamento dominante entre cientistas e filósofos. É geralmente chamado de materialismo, mas pode vir sob outros nomes. A alma, antiga imagem e semelhança de Deus, já foi há tempos abandonada. A consciência, sua versão desqualificada, aparece como um produto acidental de uma configuração específica da matéria. Ano após ano, ela segue sendo espremida e agora já duvidam até que mereça existir. “O cérebro engana a si mesmo”, disse não sei quem. Como o Professor Bigodudo, não somos mais que um amontoado de partes.

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